INVESTIGAÇÕES SOBRE UMA TÉCNICA DIVINATÓRIA: A GEOMANCIA NO OCIDENTE MEDIEVAL (*)
Este estudo de Thérèse Charmasson, tendo como Diretor de estudos o seu mentor Guy Beaujouan, investiga a prática da geomancia no Ocidente medieval, explorando suas origens árabes, suas relações com a astrologia e sua difusão em tratados, manuscritos e literatura. A pesquisa mostra como essa técnica divinatória foi compreendida, criticada e transformada, desde a Idade Média europeia até sua sobrevivência em tradições africanas e afro-diaspóricas.
GEOMANCIA
Mário Caneira Martins
8/20/20255 min read


A geomancia é uma técnica divinatória que, no Ocidente, recebeu o nome de um dos quatro grandes grupos de adivinhação distinguidos por Varrão, a partir dos quatro elementos: aeromancia, piromancia, hidromancia e geomancia. Já não se trata, na Idade Média, da interpretação dos sinais dados pela terra, como os terramotos ou as erupções vulcânicas, mas sim de uma adivinhação “erudita”, de base matemática. A geomancia visa ao conhecimento do passado, do presente e do futuro, através do exame de dezasseis figuras. Estas, formadas pela combinação do par e do ímpar em quatro níveis, são dispostas num tema geomântico, em casas. A cada figura, assim como a cada casa, são atribuídas propriedades e significados. Os prognósticos, respostas às perguntas formuladas, resultam da combinação das propriedades e dos significados respectivos das figuras e das casas.
O primeiro problema que me vi levada a colocar foi o das origens da geomancia. Os geomantes medievais, na sua maioria, atribuem à geomancia origens divinas: segundo eles, a geomancia é um dom concedido por Deus aos homens, por intermédio do anjo Gabriel ou de um profeta, Abraão ou Moisés; entre os primeiros iniciados contam-se os filhos de Noé, Sem e Cam, ou ainda Enoque, Hermes, Pitágoras e Ptolemeu, assim como astrólogos árabes como Albumasar, Zael e Messehala. Todos invocam a autoridade dos indianos, dos caldeus, dos gregos e dos árabes. Contudo, a geomancia não surge em nenhum estudo sobre a adivinhação na Mesopotâmia, na Grécia Antiga ou em Roma.
É certo que as fontes da geomancia latina são árabes: os primeiros tratados latinos apresentam-se como traduções de textos árabes (cujos originais parecem perdidos). O estudo da geomancia entre os árabes é dificultado pela ausência quase total de pesquisas sobre o tema. Recorri, por isso, às observações feitas no século XIII por Ibn-Khaldun, nos Prolegómenos, e às análises de manuscritos árabes realizadas por P. Tannery e B. Carra de Vaux. O primeiro tratado árabe existente é o de Mohammed ez-Zenâti. Este texto, que remonta provavelmente aos séculos XII–XIII, ainda hoje é utilizado nos países do Magrebe, em regiões da África Negra e em Madagáscar, como atestam os inquéritos realizados por etnólogos. Constata-se uma grande semelhança entre os dados assim recolhidos e o conteúdo dos tratados latinos.
No Império Bizantino, a geomancia desenvolveu-se a partir de fontes árabes, embora também se perceba a influência da obra de Hugo de Santalia.
Após uma primeira leitura dos tratados latinos, verifiquei que a técnica, embora se diversifique do século XII ao XV, não sofre alterações significativas. Por isso, antes de analisar esses textos, apresentei, de forma sistemática, a exposição das noções geomânticas com base nas principais obras medievais: lançamento dos pontos, formação das figuras, propriedades e significados das figuras, propriedades e significados das casas, processo de interpretação do tema geomântico. Deve-se notar as estreitas relações que unem a geomancia à astrologia: as figuras geomânticas estão associadas aos planetas e aos signos do zodíaco; os significados das doze primeiras casas geomânticas correspondem aos das doze casas astrológicas; o geomante deve ter em conta, para a interpretação, os aspectos formados entre as figuras. A influência da astrologia na geomancia, aliás, aumentou consideravelmente ao longo da Idade Média.
Estudei de seguida cada um dos tratados medievais latinos, da autoria de Hugo de Santalia, Gerardo de Cremona, Miguel Escoto, Bartolomeu de Parma, Guilherme de Moerbeke, Pedro de Pádua, João de Murs e Rolando de Lisboa [optando-se aqui por esta forma toponímica, em vez do termo “Escritor” presente na versão original, por ser assim que é tradicionalmente conhecido em terras lusitanas] indicando, em cada caso, os problemas colocados pela tradição manuscrita e analisando os dados do texto. Procurei igualmente avaliar a importância de cada uma dessas obras: investiguei os empréstimos que delas foram feitos, as traduções em línguas vulgares que subsistem e as menções à geomancia nos catálogos de bibliotecas medievais.
Na parte final, abordei este problema de um ponto de vista mais amplo: o da prática da geomancia. Com efeito, a geomancia apresenta-se como um processo divinatório complexo, que exige um conhecimento aprofundado tanto da técnica geomântica como da astrologia. Pode-se, portanto, perguntar em que medida foi realmente utilizada, e por quem. A presença de um número muito elevado de manuscritos geomânticos (tratados atribuídos, compilações, anotações, em latim ou em línguas vulgares) na maioria das grandes bibliotecas permite supor que a geomancia teve uma larga difusão. Mas é difícil saber quem, para além dos possuidores dos manuscritos — eclesiásticos, intelectuais e príncipes —, pôde ter acesso a ela. Orientei, assim, a minha investigação em duas direcções principais: a literatura e os escritos antidivinatórios. Encontram-se alusões à geomancia já no início do século XIII, na Canção da Cruzada Albigense de Guilherme de Tudela, depois no Tesoro versificato de Brunetto Latini, no Thezaur de Peire de Corban e no Terceiro Livro de Rabelais. Os testemunhos encontrados na crónica de Rolandus Patavinus e nos Anais do Hainaut de Jacques de Guise são mais interessantes: em ambos os casos, trata-se de verdadeiras consultas geomânticas, retomando questões que figuram nos exemplos propostos pelos tratados medievais. Dante, na Divina Comédia, no canto XIX do Purgatório, recorre a figuras geomânticas para indicar a data do sonho que relata.
Na literatura polémica antidivinatória, podem distinguir-se duas atitudes: a maioria dos autores condena todas as ciências divinatórias como artes mágicas, considerando-as obras dos demónios, atentatórias contra a omnipotência de Deus e contra o livre-arbítrio do homem. A geomancia é então associada à hidromancia, à piromancia, à aeromancia, aos sortilégios, aos agouros, às invocações dos mortos e dos demónios, como em Tadeu de Parma, Henrique de Hesse, Nicole Oresme ou Jean Gerson. Tomás de Aquino, Alberto Magno e Giovanni Pico della Mirandola, pelo contrário, aproximam a geomancia da astrologia e fundamentam a sua crítica em argumentos de tipo racionalista: a geomancia, assim como a astrologia, baseadas em princípios falsos, não podem em caso algum ser úteis.
A par desta geomancia clássica, baseada no exame das dezasseis figuras do tema, deve-se notar a existência, na Idade Média, de outros dois métodos divinatórios também chamados geomancia. Na geomancia astronómica ou geomance, as figuras formadas são substituídas pelos signos do zodíaco e pelos planetas que lhes correspondem; assim se obtém um tema astrológico. No segundo caso, como no Experimentarius de Bernardo Silvestre, o lançamento dos pontos conduz directamente à resposta, sem formação de um tema.
A geomancia provavelmente ocupou um espaço relativamente restrito no Ocidente medieval. Foi, de facto, concorrida pela astrologia (da qual era, de resto, estreitamente dependente), que possuía sobre ela a vantagem de se apoiar na cosmologia aristotélica e de oferecer uma explicação global dos fenómenos. Já em África Negra, em Madagáscar e depois nas comunidades negras das Antilhas, do Brasil e da América do Norte, ela desenvolveu-se consideravelmente: deixou de ser apenas uma técnica divinatória para se tornar uma forma de apreender e ordenar o mundo
* Esta tese, depositada a 21 de Novembro de 1976 pelo Sr. Guy Beaujouan, director de estudos, conferiu à Sr.ª Thérèse Charmasson, por deliberação da assembleia da Secção, em 9 de Janeiro de 1977, com base no relatório dos Srs. Mollat du Jourdin e Poulie, o título de aluna diplomada da Secção.